An interview in Portuguese with the group Cravo Carbono.
The music of the northern Brazilian state of Pará is being blended in intriguing new ways by the group Cravo Carbono, formed in Belém (the state’s largest city) in 1997. The band consists of vocalist Lázaro Magalhães, guitarist Pio Lobato, bassist Bruno Rabelo, and drummer Vovô. Their music on albums like Córtex (Trama Records, 2006) is wildly eclectic, based in rock and the regional style guitarrada (the instrumental form of lambada). I interviewed the group in 2008 in Portuguese (English translation coming soon). We talked about their music and the contemporary popular music of their region. --Chris McGowan
Chris: Pra começar, gostaria de fazer algumas perguntas sobre música paraense em geral, e seus estilos como carimbó, guitarrada, techobrega (surgindo agora), e a quase falecida lambada. Vocês concordam que a guitarrada foi criada por Mestre Vieira, e que são solos da guitarra em cima de carimbó, cúmbia, e merengue, com influência de choro?
Pio Lobato: A guitarrada é basicamente influenciada por três escolas distintas: os bailes do interior do Pará, onde os ritmos do carimbó e da cúmbia e do merengue eram muito fortes; têm influência fundamental também o choro, de onde Vieira absorveu o aspecto instrumental e melódico típico do gênero; e da Jovem Guarda, como era chamada a geração brasileira que a partir dos anos 60 que passou a gravar rock com influência dos Beatles. As bandas de bailes de Belém absorveram entre outras coisas essa formação instrumental (guitarra, baixo, bateria, voz). Daí popularização da guitarra entre as bandas de Belém.
Bruno Rabelo: Sim. Mestre Vieira é o inventor da guitarrada. É uma criação que tem como marco inicial o primeiro disco solo do Vieira, lançado em 1978, chamado de Lambada das Quebradas. É um estilo no qual a guitarra fica em primeiro plano, atuando como solista.
Lázaro Magalhães: Realmente o detalhe que merece muito destaque é que as guitarradas ficaram assim: um formato marcado por instrumentos de rock, mas que se fixou tradicionalmente pela forte influência do choro na técnica de execução da guitarra elétrica e por traduzir (no melhor sentido antropofágico) dessa maneira para o gosto local os ritmos que chegavam de fora, seja pelas rádios ou pelo cinema (o rock, cumbia, merengue). Um dos resultados disso é que no Brasil existem hoje duas grandes “escolas” de técnicas originais (muito peculiares, de modo que podemos chamar de “sotaques”) de execução da guitarra elétrica: a da guitarradas, no Pará, e a da guitarra baiana de Dodô e Osmar. Ambas são marcadas por grande inventividade.
Chris: A guitarrada de Mestre Vieira parece mais ligada ao carimbó. O que vocês acham?
Pio: Vieira não teve referências anteriores de outros guitarristas. Sua técnica é sobretudo uma adaptação da forma como ele tocava o bandolim, instrumento comum nas rodas de choro. Assim ele criou uma forma muito pessoal de tocar guitarra que certamente tem muito mais conexão com o que ele ouviu na infância em Barcarena, sua terra natal. Há muito tempo o carimbó está presente na cultura musical paraense...
Bruno: O carimbó é um ritmo paraense muito comum em muitas cidades litorâneas e ribeirinhas paraenses. E Viera nasceu em Barcarena que é uma cidade ribeirinha. Inclusive, temos a primeira canção do álbum Lambadas das Quebradas, um carimbó-guitarrada, onde o vocalista conta a história de uma baleia que teria aportado na cidade de Barcarena tempos atrás. As “frases” de guitarra de Vieira trazem muita influência tanto da parte percussiva quanto dos sopros do carimbó. Influências importantíssimas, mas não preponderantes. O choro, do mesmo modo, é uma referência forte para Vieira, que é fã de Waldir Azevedo e Bola Sete. Inclusive, na adolescência, ele chegou a formar um "regional" (nomenclatura que designava os grupos de choro até a década de '60). Curiosamente, o choro também é influência dos instrumentistas de sopro do carimbó.
Lázaro: Como o ritmo do carimbó sempre foi muito popular, não acho difícil que Vieira tenha incorporado naturalmente o ritmo ao seu repertório - e assim feito experiências com sua maneira peculiar de tocar. Isso parece natural se imaginarmos que esse interesse aconteceria de qualquer forma. No mínimo, haveria uma aproximação por ser ele um artista popular, também preocupado com o sucesso de seu repertório de carreira de baile.
Chris: Algumas pessoas fala que a guitarrada é “lambada instrumental”. No site Trama se fala que a guitarrada foi “popularizado nos anos 80 sob o rótulo de lambada.” Qual é a diferença entre guitarrada e lambada? Ou são a mesma coisa?
Pio: A Lambada nasceu instrumental pelas mãos de Mestre Vieira, com o registro de 1977, no LP Lambada das Quebradas. Adquiriu o nome guitarrada só mais tarde, através do comerciante Carlos Santos, que criou a série de discos Guitarradas sob o pseudônimo Carlos Marajó. Vários guitarristas anônimos gravaram sob essa alcunha. Os discos, que eram totalmente instrumentais, popularizaram mais tarde a criação de Vieira. Foi muito mais interessante para indústria em determinado momento comercializar canções do que músicas instrumentais. A lambada não fugiu à regra: ao toque instrumental foi adaptada a letra, que alavancou a divulgação e o crescimento em vendas. Com a expansão das vendas, depois ficou mais fácil vender as músicas instrumentais. Entretanto tudo era vendido como o rótulo “lambada”.
Bruno: A lambada surgiu no Pará na década de 70. E Vieira, desde o ínicio de sua carreira, se dizia um compositor de lambada. Mas só no meio dos anos 80 é que essa lambada instrumental, tocada pelo Vieira e por outros guitarristas paraenses influenciados pelo modo de tocar do Mestre, passou a ser denominada de "guitarrada". Este termo foi retirado de um disco homônimo, lançado no ano de 1985 pelo guitarrista Carlos Marajó, e que fez muito sucesso local.
Lázaro: E não devemos esquecer que no início da década de 90, o termo “lambada” foi popularizado no Brasil – num surto que ganhou grandes gravadoras e os meios de comunicação de massa - e chegou até a alcançar o exterior, com nomes como o paraense Beto Barbosa, que preferia se declarar publicamente como baiano, por motivos artísticos, e também o grupo Kaoma.
Chris: A “lambada” está desaparecendo como label?
Lázaro: Sim. Com o ressurgimento do ritmo no Pará, resultado do flerte de novos artistas com o gênero tradicional, a partir da segunda metade dos anos 90, o termo guitarrada passou a ser o mais utilizado para representar esse novo momento – que resultou em nova atenção de crítica especializada e estudiosos em música.
Bruno: Mesmo não estando em evidência na imprensa, nunca se deixou de tocar e fazer lambada no Pará. Atualmente, a lambada tem tido algum destaque nacional, e sem nenhum auxílio das grandes gravadoras. A responsável por isso é a paraense Calypso, banda independente mais bem sucedida do Brasil de todos os tempos.
Chris: Como se pode definir tecnobrega? Vocês acham que a independência dos artistas de “technobrega” (das gravadoras, dos rádios) está criando um modelo (um paradigm shift) que vai mudar musica brasileira muito?
Bruno Rabelo: O tecnobrega é um estilo paraense novo, criado recentemente, em 2002. E que está ainda se aperfeiçoando naturalmente. Digo isto por que, o samba, por exemplo, demorou trinta anos para ter uma forma definida. Mas em sua essência, o tecnobrega, hoje, é música eletrônica (bateria eletrônica e sons sintetizados com efeitos diversos) feita com elementos do brega paraense e fragmentos de música americana.
A criação do tecnobrega gerou sim um novo paradigma, não há dúvida. Em Belém, e em cidades paraenses próximas, o tecnobrega movimenta um mercado totalmente à margem da industria cultural dita "oficial". Aproveitando uma tecnologia barata disponível, onde PCs se transformam em estúdios caseiros, inúmeras gravações são feitas todo os dias e rapidamente são entregues nas mãos dos DJs nas festas das Aparelhagens (gigantescos sistemas de sons, como os da Jamaica, por exemplo) se transformando em hits instantâneos. Estas festas acontecem todo fim de semana, principalmente nas baixadas (como são chamadas as periferias no Norte do Brasil). Com o sucesso das músicas nas Aparelhagens, os "pirateiros" colocam estas mesmas músicas à venda em CDs de MP3 por apenas R$ 2 (1 dólar americano)! Desse modo, os autores dessas músicas, antes artistas anônimos, montam suas bandas, muitas vezes só com teclados, e vão tocar nas festas de Aparelhagens e em clubes. E assim se forma, e se fortalece, um mercado que não necessita de rádios, gravadoras ou TVs para divulgação do tecnobrega. Mudar a música brasileira? Não sei. Mas, com certeza, o estilo vai sobreviver independentemente do que acontecer no decadente mercado fonográfico brasileiro.
Lázaro: Sim. O tecnobrega fundou um paradigma novíssimo para a produção fonográfica brasileira - e que curiosamente acontece de forma paralela ao outro terremoto que já vinha sendo causando pela distribuição de música independente através de selos pequenos, festivais undergrounds e do uso da Internet para distribuição de arquivos. Esse paradigma do tecnobrega foi proporcionado também decisivamente pelos impactos da popularização da tecnologia digital, mas, de forma ainda mais peculiar, como se vê no Brasil, principalmente pelo formato diferenciado da distribuição, que mescla um forte mercado pirata e uso de “novas mídias”, não necessariamente digitais, como os circuitos de festas das aparelhagens. É um mercado independente muito bem sucedido, que dispensou grandes veículos de massa para obter sucesso. Vale lembrar que nos anos 80 e início dos anos 90 o brega era proibido nas maiores rádios paraenses. O ritmo era estigmatizado como “inferior”, “inculto” e relacionado a camadas pobres da população. Hoje, bandas como o Tecnoshow e [Banda] Calypso, que se valeram desses formatos de distribuição e produção independentes de gravadoras, cuidando dos próprios negócios, ganham espaço na mídia de massa nacional e somam lucros milionários com a venda de discos e shows.
Chris: Podem definir brega, na maneira que os músicos do Pará usam?
Bruno: O guitarrista Chimbinha (do grupo Calypso) redefiniu o brega paraense no meio dos anos 90. Ele fundiu guitarrada (uma de suas grandes influências) com o brega dos anos 80 e deixou o estilo mais dançante (swingado).
Lázaro: Originalmente, o ritmo está ligado à Jovem Guarda brasileira, que foi influenciada pelo rock inglês e norte-americano, nos anos 60. Nos anos 70, um grande rol de compositores românticos e populares se valeram desse formato guitarra, baixo, bateria e voz e criaram uma maneira peculiar de canção em todo o Brasil, muito popular e ligado às camadas mais pobres da população e também a cidades distantes dos grandes centros. De modo geral, esse gênero sempre foi por muitos anos tachado pela grande indústria fonográfica nacional e pela grande mídia como de menor valor – e por isso mesmo, por hábito identitário, foi sempre colocado entre os ritmos brasileiros que se listam no lado oposto ao dos produtos culturais que se dizem “eruditos”, “cultos” ou de “riqueza cultural” mais relevante. Especificamente no Pará, o termo “brega” é um rótulo que surge justamente de sua posição social. Vale lembrar que “bregas” também eram os nomes dados às casas de prostituição e casas de baile populares onde se tocavam muito esses ritmos românticos. No Brasil, tradicionalmente, o termo brega equivale ao kitsch. Portanto, também é usualmente ligado para identificar expressões e produtos culturais opostos aos das classes dominantes.
Curiosamente, no Pará o gênero inaugurado pela Jovem Guarda brasileira teve um desenvolvimento peculiar sob o ponto de vista da estrutura musical, o que o tornou um produto diferenciado. A apropriação das batidas 4 por 4 e a tradução desse formato para as necessidades peculiares locais – tanto sob o aspecto do discurso (letras) quanto da música teve vários resultados. Entre outras coisas, derivou em progressivas acelerações do compasso ao longo das décadas, em criações de técnicas de guitarra originais para o gênero (como fez o guitarrista Chimbinha, maior expressão do gênero) e também em outras mutações, a partir de fusões com outras células rítmicas, como o próprio carimbó e com a música eletrônica, mais recentemente. Disso derivaram vários subgêneros como o tecnobrega e o brega melody, por exemplo. Um fator também foi determinante para o fortalecimento desse “movimento”. A partir de determinado ponto dessa trajetória, estúdios locais passaram a dominar técnicas próprias de gravação para alcançar alguns resultados de timbragens e efeitos já consagrados pelo gosto popular local. A exemplo do que ocorreu na Bahia, com axé music, o brega passou a dominar uma fatia decisiva desse modo de produção, o que contribuiu muito para a independência e para o boom da distribuição de mercado de nicho que hoje vemos com o sucesso do tecnobrega.
Mais recentemente, porém, alguns artistas de renome oriundos dessa cena musical de Belém passaram a adotar o rótulo calipso para o gênero brega. O calipso é o nome dado à música brega feita pelos artistas radicados no Nordeste brasileiro, onde o movimento não é tão intenso quanto no Pará. No entanto, possivelmente, essa mudança estratégia na denominação do ritmo frente ao público nacional se dá por motivos mercadológicos, visto que o termo original está ainda ligado tradicionalmente a valores prejorativos e preconceituosos ancestrais fixados na mídia e na indústria fonográfica nacional.
Chris: Vocês acham que Belém vai virar um outro ponto muito importante da MPB, como Recife e Salvador?
Pio: Belém sempre foi um reduto de criatividade musical muito forte, entretanto as dificuldades com a articulação mercantil sempre foram um grande entrave no desenvolvimento do cenário cultural local. Acredito que esse quadro possa ser melhorado tudo depende muito do esforço em reverter os problemas com o baixo nível de instrução da região
Lázaro: Há décadas há produtos culturais musicais no Pará bons e de sobra para isso. No entanto, há um histórico arranjo conjuntural desfavorável ao Norte do Brasil, resultado das peculiaridades geográficas, da maneira como os meios de comunicação de massa se estruturaram no País – num modelo onde poucas metrópoles nacionais irradiam conteúdo para todo o território, e pouco do conteúdo local consegue realmente circular livremente pelo resto do país - e do peculiar contexto econômico, social e político de ocupação da Região Amazônica.
Apesar das alternativas encontradas pelas duas metrópoles do nordeste brasileiro para furar esse bloqueio estrutural, porém, ao contrário do que aconteceu em Recife e em Salvador, falta a Belém um franco desenvolvimento das diversas etapas da indústria tradicional da música. Ainda há no Pará uma escassez preocupante de mão-de-obra e infra-estrutura – de estúdios a técnicos de som e iluminação, de jornalistas a veículos especializados, de produtores e empresários a casas noturnas e a festivais -, o que ainda impõe barreiras e empurra os artistas locais para outros centros. Uma das poucas soluções apresentadas em Belém para esses problemas clássicos são justamente as formas de reordenamento de produção e mercado apresentadas pela cena independente do brega e do tecnobrega. Mas, ainda assim, poucas pontes de comunicação e difusão de experiências ainda são travadas entre os músicos locais de gêneros diferentes. Essa falta de coordenação, sem dúvida, é e continuará sendo definidora do futuro dos produtos culturais paraenses.
Chris: Que outros artistas do Pará e do Norte vocês acham muito importantes agora (além dos mestres velhos)?
Bruno: Temos vários. Tecnoshow, Trio Manari , Arraial do Apavulagem, La Pupunã, Fábio Cavalcante, Coletivo Rádio Cipó, Euterpia, Madame Sataan, Iva Rothe, Los Porongas, Mezatrio.
Lázaro: Ainda acho fundamentais Mestre Verequete (um dos maiores compositores de carimbó e o primeiro artista a fazer o registro do gênero tradicional em disco, nos anos 70); Pinduca (um dos principais responsáveis pela popularização do carimbó frente ao mercado nacional brasileiro, um dos grandes compositores do gênero e o responsável pelo formato moderno de banda do ritmo, com a introdução da guitarra elétrica e bateria); grupo Arraial do Pavulagem e Ronaldo Silva (grandes expressões do baião, xote e boi bumbá feitos no Norte), e Walter Freitas (um dos mais inventivos, originais e pouco conhecidos compositores paraenses, autor da obra-prima Tuyabae Cuaá, álbum do final da década de 80 que se destaca por incluir canções que mesclam o português a termos e gírias do sotaque local, fortemente marcado por expressões do dialeto indígena das populações originais da Amazônia.
Chris: Quero fazer algumas perguntas sobre as músicas de Cravo Carbono no seu primeiro disco, Córtex (2006). Pra começar, que é technoguitarrada? Guitarrada + rock (em particular, surf rock ou psychedelic rock)?
Pio: Tecnoguitarrada foi uma idéia que tive a respeito de dois gêneros que sempre caminharam paralelamente, o tecnobrega e a guitarrada. Recentemente resolvi juntar em um disco solo com esse mesmo nome. A dança é um dos elementos mais fortes na cultura daqui e a idéia foi juntar a batida eletrônica com a melodia, resultando numa música simples para dançar, com o acréscimo dos arranjos eletrônicos, o que abre um leque imenso de possibilidades sonoras. O curioso é que as mais fortes tradições da música brasileira se baseiam no binômio ritmo e melodia.
Particularmente não vejo o surf rock como influência marcante. A formação instrumental é semelhante à da guitarrada. Entretanto os sotaques são completamente diferentes. Vieira sequer ouviu surf music, e o que é mais interessante na criação dele é justamente essa distinção dentro do universo de um instrumento considerado símbolo do rock. Existem pessoas que alimentam essa idéia da surf music como origem da guitarrada. Considero é um equívoco, uma distorção dos fatos devido a pouca informação sobre a história do gênero. Existe em Belém uma nova geração que usa o elemento da surf music, uma nova vertente, mas a origem real é totalmente distinta.
Chris: Hermano Vianna definiu sua música “Café BR” como “technoguitarrada com vocal.” Também pareceu um pouco manguebeat (?). Que é aquela batida? The drum beat? É numa caixa (snare)? Veio de jovem guarda, talvez? Pareceu ‘60s surf rock para mim.
Pio: A guitarrada, assim como brega, recebeu muita influência do rock dos anos 60, mas o que chama a atenção é a mutação que o ritmo foi sofrendo com o passar dos anos, a convivência próxima do rock com os ritmos do Caribe aos poucos foi moldando uma forma mais suingada de rock, de onde nasceu o brega, que já era direcionado para a dança dos casais nos bailes.
Há alguns anos atrás, com o surgimento das tecnologias de produção musical doméstica, mais baratas, foi acrescentada a batida eletrônica ao ritmo. Porém, sempre mantendo a intenção da dança de salão. Uma boa referência para essa sonoridade é a música “The Models” do Kraftwerk, que até hoje é ouvida nos bailes em Belém.
A diferença básica nessa nova produção é o fato de não ter havido nessa região nenhuma tradição de música eletrônica anterior. A nova produção eletrônica é baseada principalmente nos timbres básicos do “Fruit Loops” a nas sonoridades cadenciadas dos anos ‘60 e ‘70, não só as importadas, ouvidas através do rádio, mas também a vasta produção de Belém que era gerada em estúdios locais na época para alimentar os bailes da cidade.
Lázaro: Pode-se dizer que a letra de “Café BR” segue um gênero de humor irônico, crítico e sarcástico que é também uma entre várias marcas registradas do brega paraense. É mais ou menos assim: rir diante de uma situação ruim e fazer disso motivo de anedota, algo bem peculiar também entre os brasileiros. Um exemplo: havia em Belém uma música muito popular, chamada “Brega do Roupinol,” que nada mais era que contar a história de um cara que conhece uma menina num bar. Eles ficam juntos. Então, ele amanhece no dia seguinte em algum lugar, sem seus pertences – ele foi roubado: o golpe, que consiste em colocar um sonífero na bebida da vítima, é muito relatado nas páginas policiais dos jornais mais populares. E no “Brega do Roupinol” as pessoas cantam essa história dançando, rindo, se divertindo... Em “Café BR,” a letra irônicamente faz vários “rodeios” sobre o fato de faltar café na casa do suposto personagem, e nunca trata do assunto de fato. Sim, a letra fala do problema de distribuição de renda e da pobreza no Brasil, mas é mais ou menos assim: vai ridicularizando uma certa índole dos brasileiros, que consiste em não ver o problema além do que está à vista. Então, não é que falte café porque não tem açúcar, ou água – aliás, na casa do personagem da letra em questão não há mais realmente nada. Hoje não tem café porque não temos distribuição de renda, justiça social.
Chris: Em “Espaço Para Passear” tem frevo e technoquitarrada, e embolada nos vocais?
Pio: “Charanga” de jogo de futebol, timbres cortantes como Jimmy Page e camadas abstratas de delay, algo mais ou menos “espacial”. Música de festa no meio do temporal, ou no meio do espaço...
Lázaro: Esqueçamos os programas bélicos que movimentaram a corrida espacial durante a Guerra Fria (EUA x URSS). Nós queremos é subir lá e nos divertir com a gravidade zero, em intermináveis caminhadas e passeios espaciais, hahaha...
Chris: “Canção à Prova D’Água” começa quase bossa nova, e depois vira um rock ballad. Pode descrever um pouco?
Pio: Sim. A idéia partiu de uma bossa-nova e aos poucos foi ganhando substância em contrapontos como Robert Fripp. O bumbo é fundamental, pois imita as batidas de um coração. A voz é sussurada, como se dissesse um segredo, e depois forte, como uma revelação ao mundo. Ao final a tensão crescente até ser arremessada ao vazio da reverberação.
Lázaro: O título de “Canção à Prova D´água” é uma ironia. O elemento água representa a emotividade. A emoção sempre deságua, vasa, lágrimas. Geralmente não há como contê-la. Então é como fazer uma canção de amor à prova de emotividade. Obviamente, uma piada, já que a letra é exageradamente, digamos até para padrões de Almodóvar, emotiva.
Chris: Na “Marx Marex,” ouvi Karnak e André Abujambra. Rock, guitarrada, pouco de repente talvez? Pode descrever?
Pio: É um carimbó com riffs. A letra é fortemente marcada pelas sílabas tônicas , são palavras percussivas.
Lázaro: O personagem Marx Marex é o cidadão mais moderno que eu já vi... Essa letra foi feita para catadores de lata. No Brasil, esses profissionais informais, geralmente ligados à camada pobre da população, reciclam 90% dos alumínio jogado no lixo pelos que têm dinheiro. Ninguém dá valor a esses caras. E a letra quer dizer isso: eles é que são avançados. Eles são o futuro do planeta e da economia. Nós, os demais, somos os tempos das cavernas.
Chris: “Arraial” é um rock ballad, um pouco zouk?
Pio: Exato, a idéia começou assim, pode-se dizer uma zouk ballad?
Chris: Na “Vale Quanto Pesa,” estou ouvindo afoxé + rock + technoguitarrada?
Pio: A imagem monótona para um motoqueiro entregador de pizza, bêbado, pensando sobre si mesmo. Uma sonoridade quase minimalista. As guitarras sobrepostas lembram um pouco o King Crimson, ou um Can tocando no bloco afro Filhos de Gandi!
Lázaro: O cara é motoboy e decide pensar se valeria a pena fazer um seqüestro para mudar de vida. Daí ele fica lá, pensando e pensando falando com ele mesmo, perdido dentro de um labirinto mental: quanto se deve cobrar por uma vida? Quanto vale a minha vida?
Chris: Que é a mistura na música “Alto do Bode”?
Bruno: A maioria das músicas do Cravo Carbono não segue um padrão rítmico linear. Com “Alto do Bode” não é diferente. A música é uma junção de guitarrada com carimbó, maculelê e Reggae. Há também um leve acento caribenho (cadence/zouk) na percussão (agogôs).
Chris: Voces podem descrever o som do seu grupo? Tem uma certa “proposta musical”?
Pio: É um “acordo entre cavalheiros”.
Lázaro: É basicamente aplicar à música brasileira o que é a própria matriz do povo brasileiro: ser mestiço, misturado, atravessado pelas mais diversas influências culturais. É como diz Darcy Ribeiro: somos uma nação em formação. É como diz Caetano Veloso, somos uma nação, portanto, experimental. Historicamente isso está na raiz da formação mutiétnica do país, mas é algo que curiosamente se converteu numa índole permanente, de abertura a influências culturais diversas, e de resultados numa transformação para algo completamente novo e diferente, apropriado, reciclado, transformado. E o melhor é que, claro, apesar dos problemas sociais históricos que isso também acarretou, o Brasil de modo geral acha esse caos bom, e vê nisso uma grande vantagem para seu futuro. A música do Cravo Carbono, então, para ser genuínamente brasileira, deveria estar aberta a tudo e olhar em todas as direções, inclusive passado e futuro, sem preconceitos musicais ou concordância com separações entre bom e ruim, alta cultura e kitsch, estrangeiro, local ou nacional, e, principalmente, não hierarquizando nada em relação a nada – quando se propõe a mesclar gêneros. Eu descreveria como “música orgânica”, aquela que derivaria de algum modo da química do carbono, a química orgânica, hahaha. O carbono, nosso herói e vilão de toda a história, é o elemento mais apto a fazer ligações diversas com outros elementos e consigo mesmo, formando uma infinidade de compostos... Como diria o Pio, somos um tratado entre cavalheiros: muitas diferenças, muitos interesses, todos dirigidos para o propósito criativo do grupo.
Chris: Quais são suas influencias maiores?
Pio: Mestre Vieira de Barcarena, Naná Vasconcelos, Brian Eno.
Bruno: Carimbó, guitarrada, cantigas de capoeira, Pink Floyd, U2, Legião Urbana, MPB anos 70.
Lázaro: Tropicalismo (Gil, Caetano... ). Movimento modernista brasileiro. Bossa Nova, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana (poetas), Darcy Ribeiro, Alceu Valença (músico), Milton Nascimento e Clube da Esquina, Chico Buarque Rock Brasileiro dos Anos 80 (Legião Urbana, Titãs, etc.), Rock Internacional dos anos 80 (U2, The Smiths, etc, etc.) Almir Sater e música popular paraguaia e do Centro-Oeste do Brasil, Movimento Mangue Beat, compositores de carimbó paraense, Vieira de Barcarena, música popular paraense (Nilson Chaves, Walter Freitas, Arraial do Pavulagem), e pode continuar.
Note: The new edition of my book The Brazilian Sound has further information about the music of Pará and the history of carimbó, guitarrada, lambada, and technobrega (a.k.a. technobrega). See: The Brazilian Sound: Reviews & Ordering Information.
Cravo Carbono interview: copyright Chris McGowan. All rights reserved.
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